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CRITICS

Fernando Cocchiarale | Crítico de arte e curador do MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro | Critic of arts and curator of MAM Rio (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro)

As obras mais recentes de Ana Luiza Rego ainda revelam o efervescente momento no qual iniciou sua formação e posteriormente sua carreira: o da volta à pintura como meio hegemônico da arte na década de 1980, tanto na arte brasileira, quanto na internacional.

Esse súbito interesse pela pintura, embora tenha refluído na década seguinte, (quando o transbordamento dos meios e suportes convencionais da arte, em curso desde a década de 60, retomou as rédeas da produção contemporânea) foi fundamental para a arte do fim do século passado. A conclusão dos anos 70 pareceu marcar o esgotamento de suportes quais o corpo (performances, happennings); as intervenções nos espaços urbanos e naturais, o vídeo, a fotografia,  o conceito, as instalações  etc.).

Repentinamente a nova geração de artistas, animada por outros de gerações anteriores que estavam no ostracismo (devido sua persistência no fazer), voltou seu interesse para a velha pintura.

Parte considerável desses artistas havia sido despertada para um processo de criação mais corpóreo e menos cerebral, com mais riscos; mais expressão do que planos prévios (projetos). Sob a influência genérica do neo-expressionismo alemão, encorajados pelos curadores e por mostras como New Spirit in Painting ( Realizada na Royal Academy de Londres, em 1981), os jovens da nossa Geração 80 entregaram-se à fatura espontânea, matérica, gestual, expressiva, isto é, esquentaram o corpo a corpo com a obra, numa recusa explícita ao distanciamento decorrente de processos mais racionalizados que prevaleceram nas duas décadas anteriores: o grito em de uma subjetividade expressa pelo fazer. Um réquiem pela decretada morte da pintura.

O trabalho de Ana Luiza Rego e o de outras artistas brasileiras como Adriana Varejão, Beatriz Milhazes e Cristina Canale, apesar de suas notáveis diferenças, pertence inequívocamente a essa genealogia.

As pinturas de Ana Luiza , sobretudo as mais recentes, nos fazem ver, combinadas, figuras humanas, órgãos tais como o coração, flores e vasos, tudo numa tensa, mas edênica coexistência cromática e semântica, confinada até os limites da tela. Sua ordem plástica resulta, portanto, do processo de ocupação de cada pedaço, de cada tela, pela espessura das camadas de tinta e pelo calor do vibrante cromatismo que a artista constrói passo a passo.

É como se todos os elementos ali estivessem para emprestar sua carne matérica ao corpo da pintura, um corpo que é, no caso, inequívocamente feminino, não somente por representar os motivos mencionados, mas porque o modo de tratá-los não só icônica, como plásticamente, também ratificam seu gênero.

Ainda que calvas, essas figuras são quase sempre mulheres, já que possuem seios e corpos bem formados. Ao lado delas coexistem outros elementos tais como um vaso uterino, flores-embriões que reforçam seu teor feminino. Mas o que arremata o sentido desses trabalhos é sua carnalidade.

Fruto de espessas pinceladas, sobretudo vermelhas e laranjas que dominam a expansão das cenas que os quadros contém, o trabalho de Ana Luiza evoca e por isso dialoga com a obra de outros artistas brasileiros.
As pinturas de Flávio de Carvalho parecem referenciar o cromatismo e modelagem dessas figuras pela tinta, que são marcas do trabalho da artista.

Tendo morado por muitos anos no exterior Ana Luiza Rego fragmentou a memória pública de sua produção entre o Brasil (da passagem das décadas de 80 para a de 90), a Alemanha (anos 90) e os Estados Unidos (mais recentemente). Reuni-la talvez seja a principal tarefa da artista nos próximos anos.

 

Fernando Cocchiarale

CAMPO DE BATALHA: COM O TIGRE DE BENGALA | Rubens Gerchman

Em minhas múltiplas andanças pelo Planeta,

tenho sintonizado minha parabólica e

registrado muitas imagens.

Imagens urbanas. Algumas consistentes e

novas, outras já enormemente desgastadas.

A grande maioria delas refeita refeita de outras

preexistentes. Requentadas, para estes olhos

que não fizeram outra coisa senão mirar.

O tempo decanta, e seleciona, este imenso

arquivo que é a memoria.

Já há alguns tempo chama minha atenção o

processo que atravessa a pintura produzida

por esta pequena e vigorosa Ana Luiza Rego.

Não se conformando com o marasmo geral

instalado no Planeta e por isso mesmo

vivendo intensamente sua historia, a

persistente Ana Luiza produz uma vigorosa

percussão. Insistindo com seus tradicionais

instrumentos de trabalho.

SEU SOM É SURDO.

SUAS FIGURAS produzem estranheza.

Construídas por sensações táteis,

arranhadas pelas garras da dor e desespero.

Garras de felino.

Possivelmente um tigre de Bengala em

busca de um espaço novo para imprimir

suas digitais. Ana Luiza compreendeu que a

tela é pele (e não, como pensa a maioria,

superfície e deposito de cores).

A tela respira.

Os porros ouvem

Ferem

Sangram

As garras rascunham a superfície

As cores se abulam

Surgem novas

São as mesmas.

Ilusão

 

Suas mulheres, más-donnas

armadas de porta-seios e músculos rígidos,

Se armam e desarmam procurando

desesperadamente seu lugar o espaço.

 

A cor é luminosa

Seus amarelos ácidos (provocam insalivação)

Garganta travada

Bala de limão

Seus corpos ardem de paixão.

Seus personagens masculinos têm seios e

Protegem suas companheiras de viagem.

 

Horror do vazio

A luta se articula por todo espaço

Toda superfície torsamente tocada

TRUNCADA

O olho passeia pela tela

Vórtice (um personagem arrancou sua

própria cabeça e a exibe como um troféu)

A pintura é fresca, se faz aí mesmo,

diante dos olhos do espectador

percutindo alto

“I’m not for beginners.

I ‘m made not for lazy people.”

 

P.S. Eu pessoalmente desconfio que após tanto “Som e Fúria”, e por detrás das

arma-duras da más-donnas, se esconde um

ser doce que, irado, busca justiça – como

um tigre num campo de batalha.

 

Rubens Gerchman

Épico emaranhado erótico | Fausto Fawcett

De longe a força da tinta tomando de assalto o nosso olhar. Como se fosse um imã ótico o óleo atrai a sua visão para uma espécie de emaranhado de figuras formando uma espécie de esfínge se oferecendo para intermináveis decifrações. Aproximamos o olhar magnetizado na direção do quadro e o que parecia ser uma maravilha borrada de teor ótico totalmente sensual, apresenta-se como um portal que nos leva à dois tipos de viagem: a viagem da visão como órgão dos sentidos e a visão como sinônimo de percepsão filosófica do mundo. Os quadros de Ana Luiza nos fazem mergulhar com um intenso prazer no caráter épico dessas duas visões. Corações, mulheres lânguidas, grávidas e principalmente sistínas. Todas elas (e os corações também), meio camufladas, envolvidas por ondas de pinceladas, flores ciclônicas, pétalas arrogantemente cascudas, rostos e corpos muito Munchs (referência ao grito) atacados por gigantescas gotas gelatinosas. Não dá para evitar o nosso gozo Van Gogh. As telas de Ana Luiza nos convidam para o sucesso do olhar enquanto instrumento capaz de viajar em descobertas de decifrações oferecidas pelo inesperado cinema da pintura. Na verdade as mulheres parecem envolvidas pelas movimentações físicas emocionais e intelectuais da balburdia humana no planeta. Como se elas observassem a convulsão humana com uma propriedade biológica mais intensa, afinal de contas foi de dentro delas num processo de vários e vários nove meses (ou sete para os mais apressadinhos), de dentro de suas fendas primordiais que saíram todas as máquinas, todos os temperamentos, todas as artes, matemáticas, guerras, agriculturas, puteiros, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno da percepção humana, todos os ódios e amores, todas as transcendencias apaixonadas, toda a grandeza e toda a mesquinharia, todos os sonhos e pesadelos, toda a boçalidade e brilhantismo, toda a algazarra maravilhosamente terrível apelidada  de humanidade. A Carne faz o Verbo. As telas de Ana Luiza escancaram esse canone numa orgia de cores intempestivas. Cada vez que uma mulher abre as pernas para jogar um tamagoshi no mundo ela está dizendo “Morte tu vai ter que trabalhar mais um pouco porque não vai parar em mim não”. Ana Luiza dá um vôo razante  sobre todos esses sentimentos e também sobre as várias representações da humana fêmea na história da assim chamada arte. São as coxas da questão amorosa exacerbada  por uma pintura voluptuosa. Exemplo total: A grávida esperando um golden baby corroborando a nossa ligação umbilical  com a eterna placenta barroca. Ana Luiza vai fundo nos quesitos básicos do dever artístico, ou seja, inventar outros mundos para equilibrar com esse aqui, deslocar, mexer com a atênção, anestesiada pelo cotidiano e fazer colagens inesperadas, mutações e metamorfoses selvagens com todas as heranças culturais. Ana Luiza bota para impressionar, com seus quadros ela bota prá quebrar todos os códigos de percepção visual. Ela diz “ Te afasta da tela e observa a mancha humana no planeta Terra. Te aproxima da tela como se o teu olhar estivesse surfando numa lupa rumo à atalhos de acessos aos camuflados segredos da multidão”. Bosh neles! Exuberancias. Excessos. Extravagancias. Épico emaranhado erótico. Volúpia carnal envolvida por volúpia ambiental. Como diz o barroco-funk tem útero no âmago. Quando você olha os quadros de Ana Luiza parece que você colocou óculos detectores do famoso calor humano, do famoso calor urbano, do famoso calor histórico. Os corpos das suas fêmeas tem a chave que desencadeia um cinema de vontades que vão desde sórdidos amores subterraneos até sublimes romances bregas. A secretária do porteiro da noite vazia mergulha no fundo do coração que é abismo de gritos e sussurros que saem de uma garganta profunda habitada por casais à deriva dançando ultimos tangos atrás de portas verdes que escondem mulheres objeto na noite dos mortos vivos sacudidos pelo império dos sentidos excitando calígolas que perseguem condessas descalças pisando nas marcas da maldade da pantera que de olhos bem fechados só enxerga instintos básicos. A pintura de Ana Luiza é máxima delícia. São as coxas da questão amorosa exacerbada pela pintura voluptuosa. Épico emaranhado erótico.

 

Fausto Fawcett

Reynaldo Roels Jr.

Parece fácil perceber em que consistem os principais procedimentos nestas pinturas. Uma vez garantido que a organização básica do suporte permaneça estável – quanto as imagens tanto quanto aos meios pictóricos específicos -, a artista pode dar rédea livre a sua própria expressividade. A primeira vista o problema não parece tão difícil. Apenas quando percebemos que aqueles procedimentos são apenas hipotéticos, e não reais, e que “aquilo que pensamos ser a organização básica não é o inicio, e sim o fim do processo, é que as coisas começam a aparecer de modo diferente”. De fato, Ana Luiza Rego põe em jogo uma certa tradição de pintura que trabalha na direção oposta aqueles procedimentos e, em vez de estruturar as coisas logo do inicio para assim as manter ate o fim, tem que construir o seu caminho com muito esforço desde o começo. “A organização é o resultado final daquele esforço”, e ela tem que brigar por ele.

A tradição em que ela se apoia é, naturalmente, a do expressionismo que os anos 80 trouxeram novamente a tona, ainda que liberado da carga subjetiva (e frequentemente negativa) que afetava os representantes originais do movimento. A nova versão foi, em conjunto, mais distanciada e não tão pessimista, como se duvidando claramente das próprias questões com que parecia se comprometer.  A pintura era o seu verdadeiro objetivo, não a historia ou a sociedade, “assim como a expressividade era um recurso pictórico”, e não politico. São estes os pressupostos do trabalho de Ana Luiza, o pano de fundo contra o qual ele pode ser entendido. “Não se deve tomar por literal a sua expressividade”, ainda que as imagens pintadas que ela utiliza, e não “mensagens” através destes meios. Não se pode esperar dessas pinturas que elas portem qualquer simbolismo, seja pelas imagens, seja pela cor, seja pela pincelada. É exclusivamente em função dos meios que as pinturas existem, e se o embate em favor da organização pictórica tem um significado – “ e de que parece depender a própria expressividade da pintura” -, é simplesmente porque, hoje, não se pode ter garantias a priori a respeito da pintura; ao contrario, ela só pode ser o resultado a posteriori de uma conquista árdua, de um grande esforço e demarcação do seu campo próprio de ação.

 

Reynaldo Roels Jr.

Setembro de 1992

 

 

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